Entrevista

Babalorixá: José Raimundo de Ogum

Terreiro: Ilê Axé Obá Nirê

Regente: Xangô

Quando subimos as escadarias que levavam ao Ilê Axé Obá Nirê, ainda nos sentíamos apreensivos. Apesar de cientes de que nada de sobrenatural nos esperava, a localização do terreiro era um tanto obscura. A longa escada que dá acesso ao terreiro do babalorixá fica espremida entre muros de casas antigas, cobertos de hera. À medida que avançávamos, ouvíamos  sonoros “tôfracos” vindos das galinhas d’angola, criadas soltas no jardim do nosso entrevistado.

Paramos em frente a uma pequena grade e chamamos, esperando alguém aparecer. Pediram-nos para esperar. Nesse meio tempo, aliviamos nossas tensões e percebemos o óbvio: não havia o que temer. Porque, mesmo após tanta pesquisa, ainda estávamos amedrontados? A sociedade imputou em nossas mentes a imagem negativa de tais lugares. Ou, talvez, a presença de um babalorixá nos trouxesse a idéia de algo místico, ainda não conhecido por nós.

Finalmente entramos. Quem nos recebeu foi uma figura simpática, de estatura pouco acima da média, negra, vestindo trajes típicos do candomblé. Perguntei se podia tirar foto e ele respondeu que não. Estava de obrigação. E mesmo se não estivesse, não gostava de tirar fotos. Então, iniciamos a entrevista.

“Meu nome é José Raimundo Santos Silva, babalorixá do Ilê Axé Obá Nirê.”, apresentou-se. “Minha casa foi fundada pelos meus antepassados. Meu avô mantinha a casa aberta, mas já cultuava Xangô, que é o patrono da minha casa de candomblé. Depois da morte dele, Xangô ficou muito tempo sem cuidados – 40 anos. Depois de 40 anos sem ninguém pra se responsabilizar pela casa, eu assumi.”

Perguntei se, por cuidar de uma casa de Xangô, esse também era o seu orixá. José Raimundo negou, dizendo que embora a casa seja de Xangô, é Ogum que se manifesta nele. Assim, começamos a falar sobre sua vida no candomblé.

“Eu raspei o santo em 1983, fiz as obrigações. Essas obrigações já têm tanto tempo, menino. Foi tanta informação pra um jovem com muita responsabilidade. Porque tomar conta de uma casa de candomblé é muita responsabilidade, uma grande responsabilidade. Para pessoas sérias, né? Pessoas que têm seriedade dentro do axé. Para as pessoas perdidas é muito difícil.”

ogumOgum, orixá de José Raimundo

Perguntamos como ele se tornou um babalorixá e ele respondeu que ninguém “se torna” babalorixá. Nasce assim.

“Cada um tem o seu dom. Você nasce com um dom de cultuar orixás, de amar e viver orixás. Eu nasci com esse dom. Dentro de uma família de seis, minha mãe era de candomblé, minha avó era de candomblé e meu pai também era de candomblé. Nessa questão, eu nasci com um dom e já nasci babalorixá. A gente nasce babalorixá. Babalorixá não se transforma. A gente nasce com o dom de jogar búzios, de fazer ebó e de se manifestar com os orixás.

Fiz obrigação de um ano, fiz obrigação de três anos e fiz obrigação de sete anos. Depois da obrigação de sete anos, recebi o cargo. Estava preparado para receber esse cargo. É o tempo de aprendizagem perante o orixá para você tomar posse do cargo que o orixá te deu.

Como uma criança, que entra com seis, cinco anos numa escola – que o candomblé é uma grande escola – e aí você cresce, passa pelo primeiro, pelo segundo grau, até fazer o seu curso técnico – que é uma opção que você vai ter que fazer.”

José Raimundo continuou, falando das obrigações de um babalorixá.

“O dever de um babalorixá é ser responsável por todos os atos dentro da casa de candomblé. Cuidar da casa, pedir que as pessoas venham à casa de candomblé cuidar do orixá que elas têm nela, cuidar da casa de candomblé, que é o corpo do orixá. Porque se a casa tiver suja, como é que o orixá vai ficar? Todo mundo gosta de ver sua casa limpa, sua casa cheirosa, perfumada. O orixá também gosta. De beleza, de flores, de muita limpeza.”

Pedimos para ele falar um pouco da hierarquia do candomblé. “Primeiro de tudo, vem o babalorixá”, contou. “Depois vêm as ekedis, os ogãs, que são as pessoas que tomam conta da casa de candomblé. Quando meu santo se manifesta, quem toma conta da casa e do meu orixá é o ogã e a ekedi, que no caso são os pais e as mães do orixá. O orixá aponta e escolhe uma pessoa que não recebe o orixá e passa a cuidar. Enquanto eu, caso um orixá se manifeste em mim, passam a tomar conta da casa. Administram junto com o próprio orixá.”

Segundo o babalorixá, cerimônias são freqüentes na sua casa. Afinal, se uma casa de candomblé não vive movimentada, não é uma casa de candomblé.

“Aqui no Ilê Axé Obá Nirê tem um ciclo de festas. Sempre acontecem no mês de janeiro. Do primeiro sábado ao último. No primeiro sábado, pra Ogum. Depois de Ogum vem Omolu, as Iabas, que são as orixás femininas, e então Oxalá. Durante o ano temos as obrigações dos filhos de santo, os Iaô, que são filhos que estão sendo feitos na casa de candomblé, confirmação de Ogã e de Ekedi. Há também filhos de santo que vêm de fora, de outros estados, que vêm aqui pra cuidar do orixá, que têm orixás na casa. Agora mesmo teve um de Curitiba que veio aqui cuidar do santo, no mês de junho.”

Todos os rituais do terreiro são abertos ao público, exceto o gori.  “Porque eu acho que o gori é um fortalecimento da cabeça da pessoa, e não acho conveniente receber outras pessoas sem saber como está a espiritualidade delas.”

O Ilê Axé Obá Nirê também mantém relação com outros terreiros de Salvador. Perguntamos se eles faziam isso por tradição ou amizade. “Por irmandade. O candomblé é uma grande família. Se o candomblé não viver família, não é candomblé. Sempre deve existir irmandade, porque quem vem pra um candomblé são as pessoas de axé. Você viria pra um candomblé sem saber o que é? Muito difícil, porque as pessoas são muito temerosas. Têm medo do orixá Exu, porque o orixá Exu, segundo a Igreja Católica, é o diabo. Então as pessoas criam muita imagem negativa em cima da religião do candomblé.”

Comentei que em vários lugares de Salvador, a exemplo da Feira de São Joaquim, vendem a imagem de exu na forma de um diabinho. “Têm pessoas do próprio candomblé, que são desencontradas, que chamam Exu de diabo.”, José Raimundo respondeu. Aproveitei a deixa para perguntar sobre charlatões que fingem ser pais-de-santo para ganhar dinheiro.

“Pra mim, existem muitas pessoas perdidas, porque isso não se inventa. Não tem como você chegar aqui e ver uma pessoa dizendo-se manifestada e não estar de orixá. Porque isso é uma questão de estrutura e uma questão de educação. Quando você tem educação e uma estrutura de axé fortalecida, não tem como permitir que uma pessoa faça uma coisa dessas. Eu acho, no meu ponto de vista, que existem pessoas ruins, como toda religião tem,  e existem pessoas boas.”

Lembramos, então, que o candomblé sofre uma enorme intolerância no Brasil e mesmo na Bahia, onde é mais difundido. Quisemos saber se ele faz algo para tentar diminuir o preconceito das pessoas contra a religião.

“Eu participo de manifestações, mas eu acho que a intolerância religiosa é uma questão de natureza, porque a partir do momento em que o homem não respeita a natureza, ele sempre vai ter intolerância a alguma coisa. A religiosidade é uma célula, um núcleo que está dentro do terreiro de candomblé. Não é “eu amo meu orixá, eu vivo pelo meu orixá”: a minha vida é meu orixá, eu sobrevivo do meu orixá. Então, pra a minha religião não existe intolerância. Agora, as pessoas acreditam em propagandas enganosas, que querem sempre estar criando um contexto em cima do que elas não confiam. Eu acho que o candomblé devia se unir mais. Se unisse, seria mais forte e não deixaria brechas para certas pessoas negativas, que criam essa intolerância.

Eu acho que, como o candomblé foi uma religião muito oral, muita coisa se perdeu. E devido a essa perda, devido a essa falta de respeito que as pessoas têm por cultuar o candomblé como uma religião de negro, como uma religião de maldade, muita coisa se deteriorou. E eu acho que o candomblé tem tanta força, porque eu vivo pela natureza, tudo o que a gente faz no candomblé é pela natureza, tudo o que a gente cultua ao pé do orixá é da natureza. É a galinha de quintal, é o feijão, é a rapadura. A intolerância está muito em cima disso. Da ignorância que as pessoas têm em conhecer o candomblé por ter medo da coisa. Porque acha que o candomblé ta todo ligado à maldade. Mas a maldade não está no orixá. Você já viu o rio ter maldade? O pé da árvore ter maldade? O que o candomblé cultua é isso: é a pedra, é o pé da árvore, é a folha, é a água, é o mar. Que maldade que existe em cima disso? A maldade está em nós, que somos seres humanos, que não respeitamos um ao outro.”, após uma pausa, ele continua:

“Quando as pessoas fazem uma limpeza de corpo, que vocês vêem na rua e chamam de ebó ou macumba – que é uma palavra negativa que não existe no candomblé – a palavra Macumba, uma coisa má. Não existe isso. Quando você vê um ebó na rua, nem sempre é uma maldade. Algumas pessoas acham que quando você encontra um agdá na rua com algumas oferendas, dizem que se está fazendo mal a alguém. Nem sempre.

As pessoas criam a maldade no que não existe. Tem oferendas que a gente larga no jardim porque é da natureza. E a gente vai largar onde, se não for no jardim? Nesse jardim que tenho aqui na frente, as pessoas põem oferendas à terra. Tá indo pra a terra. Algumas pessoas põem no asfalto, no cimento. Eu não acho conveniente. Ebó tem que ir pro mato, que o mato é a natureza do orixá. Não tem sentido colocar no meio da rua. A bebida você despeja no chão. Pra que o casco?”

Mudando de assunto, procuramos saber o que é necessário para se iniciar no candomblé.

“A pessoa precisa frequentar a casa de candomblé, ser abiam de uma casa de candomblé: uma pessoa que está iniciando dentro da casa. Passa a frequentar, passa a conhecer o babalorixá, passa a conhecer os costumes de uma casa de candomblé, pra ver se esses costumes se adéquam ao modo de vida que ela quer levar. Porque responsabilidade existe muita, mas são poucos que aceitam. Muito resguardo, banho de folhas. Existem certas privações com o mundo que nem todo mundo aceitaria.

Você frequenta, depois você passa a conhecer os costumes, quais os dias que você precisa vir na casa de candomblé pra cultuar o orixá. Como é casa de Xangô, aqui toda quarta feira nós arriamos amalá pra Xangô. É uma questão de história que eu criei dentro do Ilê Axé Obá Nirê. Toda semana o filho de santo vem, toma seu banho de folha, veste sua roupa de axé, a gente limpa a casa, arruma, acende, cozinha o amalá, que é um caruru pra vocês. Feito de quiabo, camarão, azeite, cebola. Uma comida normal. Só que essa comida não passa a ser normal se nós oferecermos ao pé do orixá, que aí a energia é outra. Às vezes as pessoas me perguntam, e aí, os orixás comem? Não. Orixá não é gente, não tem como comer. Ele suga a energia que nós jogamos quando estamos fazendo e oferecemos ao orixá. É a minha energia que ele está puxando. A energia dos elementos: do camarão, do azeite, da cebola. São todos elementos da natureza. Da natureza para a natureza.”

Finalizando a entrevista, voltamos a falar sobre a vida de babalorixá. Quisemos saber se ele exercia alguma outra profissão ou mantinha uma renda extra.

“Sou administrador de empresas, exerci durante o tempo que trabalhava fora, mas devido às minhas obrigações dentro do axé, não tive mais como. E bordo. Richelieu. Dou cursos de richelieu. Vocês sabem o que é?” Respondemos negativamente. José Raimundo buscou, então, um tecido branco, bordado com figuras de flores e folhas. “As baianas de acarajé usam richelieu.”

richelieuExemplo de bordado richelieu, muito usado no candomblé.

Comentamos que, se ele desistiu de outras carreiras para se dedicar ao Ilê Axé Obá Nirê, a função de babalorixá devia ser árdua.

“Não é árduo, mas exige muita dedicação. Agora mesmo dei minha obrigação e tenho que ficar de resguardo. Recolhido. No sentido de não me misturar com a rua. Não vou muito à rua. Meu orixá fica numa situação em que a gente não pode namorar, beber, fazer esse tipo de coisa que é coisa de rua. E carne a gente também não pode comer, porque estamos purificados.

O resguardo é uma das prioridades do candomblé. Porque se não tiver resguardo não tem força. Resguardo é o tempo de purificar sua espiritualidade. A partir do momento que você fica recolhido para dar uma obrigação.”

Agradecemos a entrevista e quase íamos saindo quando notei uma mesa com santos católicos. Oras, então ele era favorável ao sincretismo?

“Os santos são apenas lembranças de minha avó. Acho que o sincretismo foi fortalecido quando era necessário. Quando os africanos foram perseguidos pelos senhores, eles tinham que fazer o sincretismo pra preservar o orixá. A religião deles nunca foi o catolicismo. Então não tem porquê, no Ilê Axé Obá Nirê, aceitar o sincretismo.”

4 Responses to Entrevista

  1. Fabiana D.C Lima disse:

    Gostaria de informações a respeito de curso de richelieu do SR José Raimundo.

  2. MARCOS VICENTE disse:

    adorei seu cometario principalmente quando fala de do nosso orixá ogum que ele te conserve sempre assim essa pessoa sabia e maravilhosa dentro e fora do axé e creio que ainda vou apreder muito depois que deconheci..ass marcio amigo de sua filha xaline

  3. MARCOS disse:

    esse é cara

  4. Nathália d'Oxumare disse:

    Otima a entrevista,sou de axé tambem e as palavras do Baba Jose Raimundo transmitem realmente segurança,comprometimento e seriedade…Motumbá Babá e axé aos outros.

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